À socióloga que há em mim cumpre posicionar-se face aos tempos sociais que vivemos.
Os rituais são procedimentos colectivos de afirmação e renovação cultural ou sócio-cultural, se preferirem.
Os ‘rituais de passagem’ encontram-se entre os múltiplos rituais que todas as sociedades conhecem e mantêm (sendo variáveis os seus conteúdo e modo de praticar): aliança familiar, dogma simbólico-religioso, tabu cultural, mobilidade social. E são fulcrais.
Falamos de múltiplos ‘rituais de passagem’: a da adolescência para a idade adulta (rapazes e raparigas); passagem da condição anterior e posterior à de procriador (mãe e pai); passagem da situação de inactivo à de socialmente produtivo (aprendiz e trabalhador); passagem da condição de desconhecedor à de especialista (estudante e profissional); passagem de estações, passagem de fases mitológicas ou passagem de ano. Estes alguns ex.ºs dos múltiplos rituais que todas as sociedades conhecem e mantêm – sendo, repito, variável o seu conteúdo e o modo de os praticarem.
Na passagem de ano, um balanço do passado é expectável, antes da formulação dos votos e desejos – individuais e comunitários – para o rumo do futuro ano.
Este ano foi particularmente surpreendente, do meu ponto de vista, no que se refere i) ao mapa ideológico mundial – crescimento da extrema-direita, assumido e consolidado por actos legais; e ii) à dispersão de padrões identitários clássicos como a pulverização de refugiados e escravos laborais; ou a dispersão de padrões familiares, de género e de cidadania em geral.
Sem fazer aqui um mapa ou estudo sistemático destes dois vectores sociais da mudança global, o que me proponho é sublinhá-los neste momento de fecho do velho 2018 e de preparação para a chegada do novo ano 2019.
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Ensinam-nos os especialistas dos “estudos das mentalidades” que os vectores simbólico-representacionais são dotados de propriedades de ‘rarefacção’ e ‘condensação’ – mais do que a ilusória visão superficial que substitui ‘novos’ valores e quadros representacionais aos ‘velhos’- quer na perspectiva da transição, da ruptura, da dialéctica ou da reconfiguração desses fenómenos. Estas úteis e fundamentais escolas de pensamento e análise social não esgotam nem substituem aquela perspectiva, a saber: independentemente da ‘velocidade’, da ‘mecânica’, da ‘conflitualidade’ ou dos processos envolvidos, as dinâmicas representacionais são conjuntos vivos, co-construídos e reproduzidos que se mantêm enquanto ‘fazem sentido’ e não surgem outros que os substituem – por fazerem mais sentido, logo, por serem socialmente considerados melhores.
Ora, a construção do sentido é assaz complexa, sabendo contudo que, longe de ser processada apenas aos níveis expressos, explícitos, conscientes e assumidos, também ( e sobretudo?) se processa – se co-processa relacionalmente, corrijo – aos níveis ocultos, implícitos, inconscientes e latentes. Desta feita, em níveis desconhecidos e não acessíveis.
Tal complexidade tem sido reforçada pelos estudos interculturais ao mostrarem que a construção das identidades sociais é culturalmente embebida pelos vectores dominantes ou não dominantes da cultura de inserção dessas identidades. Assim, sabemos que os valores culturais – e os traços identitários – do poder e do sucesso estão associados a culturas individualistas; ao passo que as culturas colectivistas estão associadas aos traços identitários da submissão colectiva ou pertença comunitária.
Por outro lado, os estudos de educação e pedagogia intercultural apontam para o que historiadores, sociólogos e antropólogos também sublinham, em convergência: os padrões ou modelos educativos e socializadores que emitimos configuram e predispõem comportamentos ou, pelo menos, atitudes. Mas ainda há outro elemento a considerar: o silêncio ou a ‘omissão socializadora’, digamos assim, face aos modelos que se pretendem abandonar ou superar.
Se o que é acentuado tem o seu valor potencializado, ocorre, por outro lado, que o que se silencia – por ser violento, nojento, terrível, assustador, etc – não se explica e, assim, não se desconstrói, podendo ganhar em fascínio, curiosidade, deturpação, esquecimento, deformação e, mesmo, falsificação.
Penso, em concreto para o caso português, na difícil relação que a minha geração e a anterior a mim tivémos – temos tido – com os modos sociais, seus procedimentos, instituições, princípios e fundamentos anteriores à nossa sociedade democrática. Falo do antes-25 de Abril, da Guerra Colonial, do fascismo e da inerente miséria económica e ‘moral’.
O mesmo terá ocorrido com outros povos onde a progressão da extrema-direita tem sido subscrita, concretamente no que se refere ao III Reich, aos nazismos e a várias doentias sociedades que, não conseguindo falar dos seus tabus, dos seus medos, dos seus mortos, das suas traições entre irmãos e amigos, consentiram no respectivo esquecimento, deformação e falsificação e, para os espíritos mais jovens e desinformados – ou inseguros -, alimentaram o fascínio, a curiosidade e o encantamento à volta desses modelos ideológicos e político-sociais de extrema-direita.
Não estou a afirmar que o fascismo português foi igual ao nazismo alemão: escalas distintas impõem diferenças nas suas diversas obras, ainda que ambas informadas, isso sim, na mesma bateria de valores racistas, exclusores, mortíferos e infernais de concepção e política da vida humana.
Somos os protagonistas da desagregação da modernidade e das suas instituições e fundamentos centrais. Esta desagregação foi genialmente resumida, em Bauman, pela metáfora do ‘líquido’: ‘vida líquida’, ‘amor líquido’, ‘tempo líquido’, etc… Somos os que estamos a fazer a transição entre o ‘sólido’ da engrenagem, dos valores, dos estados e instituições, e do próprio percurso de vida de cada cidadão até meados dos anos 70 [crescer, estudar, trabalhar, constituir família, ter um emprego toda a vida até passar à reforma] e outra configuração de sociedades que ainda não sabemos como serão.
Uma certeza as ciências sociais confirmam: tudo o que é socialmente e relacionalmente construído, é socialmente e relacionalmente mutável – ou seja: nada é fatal nas realidades sociais.
O medo da mudança ( o medo do ‘líquido’), associado a pouca, rara ou muita desinformação dos modelos sociais totalitários e aparentemente estáveis, com poderes hierarquizados e exercidos de forma alegadamente clara, estruturada e forte – eis o que está na base da crescente subida das extremas-direitas legais, em processos populistas que assediam pessoas e massas inseguras.
Trump e Bolsonaro são bons exemplos do que falhou na socialização (co-construção de modelos ) e educação ( fundamentos e conteúdos ) dos valores democráticos. Melhor: eles são exemplos de que a popularização não garante a democratização.
Enquanto continuarem a ser eficazes relacionalmente ou societariamente, os valores da discriminação e da exclusão – por cor de pele, por opção parental, por orientação sexual, ou por origem étnica ou social ou condição de género – podem rarefazer-se, mas, na melhor oportunidade, condensam-se e bloqueiam a livre circulação dos valores ‘líquidas’.
Por isso o avanço da extrema-direita global responde ao medo globalizado (e socializado e instigado) face à mudança e ao diferente. Rarefeitos durante duas ou três gerações, os valores mais retrógrados e desumanos emergem agora, condensando-se por, alegadamente, acenarem com prioridades culturais e traços identitários que associam o sucesso ao individualismo.
Somos protagonistas deste processo social.
Ora, e sem querer cair no organicismo do séc. XIX, não só sabemos que há vários componentes líquidos que alimentam a vida, para além da água (sémen, seiva, sangue…), como também somos chamados a reconhecer a diversidade dos estados desses vários componentes.
‘Mais vale tarde do que nunca’ – diz o povo. E se tem havido responsáveis que o perceberam, todos temos de perceber que há que continuar a fazer um tremendo trabalho pela memória.
Reconstruir memórias, re-contar e re-situar o que de terrível e irreversível se tem feito ( e continua a fazer) nas sociedades, para vincularmos os jovens (e não só) ao futuro, em vez de ficarem hipnotizados por narrativas deturpadas da extrema-direita.
Portanto, o foco é o futuro; mas tem de fazer-se num presente bem enraizado no passado e enfrentando e assumindo todos as suas vertentes.
A vida digital permite mentir, ficcionar, iludir e informar. Chegar a muitos e em tempo instantâneo. Aprofundemos estas redes e meios para des-construir a ‘força segura’ dos modelos exclusores.
Mas não dispensemos o contacto com quem viveu e conhece a experiência diária e pode testemunhá-la. Por isso o trabalho sobre a Memória tem de ser ainda mais feito: lembrar para conhecer e, a partir daí, avançar; em vez de esconder ou adiar a verdade.
Na onda que estamos a cavalgar há múltiplas gotinhas de mudança e esperança que irão dar à costa; é essa a nossa rota.
Que 2019 será um ano de adensar das desigualdades, é o rumo traçado pelas políticas económico-finaceiras – mutáveis e que urge re-orientar.
Como urge aprofundar as memórias colectivas e as mentalidades sociais, de modo a que os ‘pacotes representacionais da exclusão’ deixem cada vez mais de fazer sentido. Laboremos para o ‘esfumar dos quadros representacionais exclusores’, em vez de mantermos a categoria da reprodução dos quadros representacionais, por ‘rarefacção/condensação’ (por enquanto).
Bom Ano de 2019 a todos e todas.
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M.ª de Fátima Toscano. Socióloga (PhD).
Coimbra, 30 de Dezembro / 2018.