Portugalito

Portugalito (cf. recensão por José Manuel Pureza e Amadeu Carvalho Homem). Palimage ed.

HERANÇAS DOENTES
de: Prof. Doutor José Pureza

Apresentação de “Portugalito”, de Maria Toscano Coimbra, TAGV, 4 de Outubro de 2002

Eu vivo num país em que os headphones são usados como antibióticos sociais contra as bactérias do espaço público. Eu vivo num país em que o pontapé do Marco na Sónia tem direito a prime time (talvez por ter sido cirúrgico, talvez por não ter tido efeitos colaterais). Eu vivo num país em que há luta de classes: os empreendedores dinâmicos e modernos contra os contribuintes atávicos e broncos. Eu vivo num país que tem uma cimenteira num parque natural e uma cidade que não pode beber porque o rio leva mais veneno do que água. Eu vivo num país em cujas cidades as paragens de autocarro “respeitam em pleno o taylorismo: os saltos altos, as gravatas – dissimulação das desgraças – atestam dessas vidas espertas: espera-se, em fila, pelo destino; diz-se a política do dia e, do desafio, o golo fundo: todos – em fila – domam o mundo” (MariaToscano).

É neste país em fila que eu vivo. O país do “luto fadista” (idem) e do “modo funcionário de viver” (O’Neill). Neste Portugalito, há poetas que nos apontam caminhos preciosos: “Subamos e desçamos a avenida enquanto esperamos por uma outra (ou pela outra) vida” (O’Neill).

“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós…

(O’Neill)

Neste Portugalito – que se imagina centro mas que nuncadeixou de ser periferia – multiplicam-se como cogumelos discursos reveladores de trágicas perdas e de dolorosas orfandades: “A minha política é o trabalho!”

“Aqueles que dizem mal dos meus filhos, eu trinco-os!”

“O meu partido é o Benfica!”

“Eles que decidam, que a gente paga-lhes é para isso!”

“Isto é tudo a mesma vigarice, pá! Eles só se querem é abotoar com o nosso, pá! E a gente que se esfalfe a trabalhar, não é? Pois, pá, é tudo uma cambada! É verdade, o teu chefe engoliu aquela da morte da tua tia?”

São discursos de capitulação e de doença social, com idolatrias estranhas, que vão do tunning ao jet set e do health club à evasão heroinómana. São afinal o contraponto vulgar do fulgor com que se instalou entre nós a teologia do mercado, com os seus ídolos, as suas liturgias e os seus sacerdotes. E, acima de tudo, com a sua legitimação pela Europa desenvolvida e ilustrada.

Esta teologia, a que alguns chamam pensamento único – e que, no Portugalito, é apregoada como “aquilo que se pensa lá fora, na Europa” – assenta em três discursos complementares. O primeiro é o discurso da funcionalidade. Enuncia-se nestes termos: é bom o que é tecnicamente evoluído, o que funciona bem. O mandamento máximo é o da performance óptima do sistema. E esta sacralização da performatividade óptima do sistema acarreta uma deslegitimação de todas as proposições que escapem, de alguma maneira, ao império da acção racional, ou melhor, ao frio calculismo dos fins.

Muleta deste primeiro, o segundo discurso é o discurso do realismo. Enuncia-se assim: é fundamental ser-se realista e ser realista é basicamente reproduzir o que está. O realismo é um produto frio do clima intelectual do positivismo, assente no pressuposto de que as realidades objectivas existem como objectos independentes do sujeito que as observa e que sobre elas actua. Os factos (o que está) contrapõem-se aos valores (o que deve estar) e têm sobre eles absoluta primazia. Por isso, o que está é o que deve estar, porque a História nos ensina que sempre foi assim e tudo o mais é sonhar alto e cair num utopismo de realização prática inviável.

O terceiro discurso é o discurso do subjectivismo. Enuncia-se assim: cada um de nós é acima de tudo um indivíduo, rodeado de objectos disponíveis para a nossa absoluta apropriação. Cada um de nós nasceu para ser um “master of the universe”, dominador do seu ambiente próximo. É pela apropriação das coisas, das relações com os outros e pela manipulação da natureza que o indivíduo se reconhece como um ser livre. Ter “direito a” é a linguagem que a modernidade forjou para dar corpo a esta visão das coisas.

Suponho que Italo Calvino não conhecia o Portugalito. Mas podia perfeitamente estar a referir-se a ele quando pôs na boca do Marco Polo de “As cidades invisíveis” as seguintes palavras: “O inferno dos vivos não é coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar”.

“Onde haverá assim um País
feito assim a espaços, profundo (…)?” (Maria Toscano)

Porventura nenhures, porque o Portugalito que a Maria Toscano corta neste livro às fatias é suficientemente enteiriçado para ter resistido incólume ao liberalismo de 1820, ao 5 de Outubro e ao 25 de Abril. Mas, tal como o Polo relativamente ao inferno, assim também eu teimo em encontrar o que e quem não é Portugalito neste país. Para mim, esse país alternativo faz-se desfazendo e reconstruindo, com arrojo, duas heranças que trazemos há séculos às costas.

A primeira é a da artificiosa contraposição entre Estado e sociedade civil sobre a qual construímos o discurso do “ter direito a” como símbolo da autonomia dos indivíduos face ao Estado e à sua capacidade opressiva. Aprendemos que a cidadania é uma categoria referida às relações políticas e que a res publicaa sério é a que tem o Estado como referência central. Pelo meio, esquecemos o relacionamento horizontal entre as pessoas. Por isso, os direitos humanos e a democracia pararam à porta da escola, à porta da família, à porta da fábrica, à porta do bairro, à porta da comunidade internacional. Talvez por isso alguns de nós sintam, inconfessadamente como convém, tanta estranheza e tanto desconforto com a bizarra ideia, atempadamente travada pelo actual governo, de trazer a educação na cidadania para dentro da escola. A segunda herança que importa desconstruir é a da cidadania democrática como litania de práticas ordeiras, do chamado “bom comportamento cívico”. Importa resgatar o impulso subversivo que as lutas pela dignidade comum sempre tiveram e ter um pouco mais de pudor quando caímos na tentação de, desde a normalidade bem comportada, cooptarmos as práticas e as ideias dissidentes. É por isso que não faz sentido educar para a cidadania mas sim educar na cidadania.

Sem que saiba de cor o caminho desta transformação, aposto que o Portugalito açoitado e mimado nos versos da Maria Toscano pode mudar. E que a cidadania exigente e a democracia alargada hão-de estar no centro desse caminho. Outro poeta o disse com palavras muito mais belas e certeiras do que eu:

“Neste espaço a si próprio condenado

Dum momento para o outro pode entrar Um pássaro que levante o céu
E sustente o olhar”.
(O’Neill)